O sarcasmo incomoda ou ajuda a passar pelos incômodos? Como sempre, o problema reside no conceito – ou, para ser mais preciso, na conceituação. Conceitos surgem a partir de necessidades humanas, algumas atreladas ao exercício da comunicação (a interação do indivíduo a partir da presença política na sociedade), outras intrínsecas aos sentimentos que despertam a humanidade para saltos históricos imponentes: da Terra à Lua ou, cinematograficamente, do osso humano à nave estelar (na iconografia de Stanley Kubrick). Daí que o sarcasmo não surge na aurora do homo sapiens, mas se revela na sequência de suas contradições. Se a ironia é anterior ao sarcasmo, tanto melhor; não convém dissociar entidades que costumam dançar na mesma balada! Porque onde não há uma festa bem que poderia haver. A pesquisa rápida do Google leva à definição da Oxford Languages, que, de acordo com a própria página de consultas online, trata-se da maior editora mundial de dicionários: “sarcasmo – substantivo masculino – ironia cáustica”. Já na Wikipédia consta o seguinte: “Sarcasmo (do grego antigo σαρκασμός, ‘sarkasmos’ ou ‘Sarkázein’; Sarx = ‘carne’, Asmo = queimarː ‘queimar a carne’) designa um escárnio ou uma zombaria, intimamente ligado à ironia (muitas vezes essa ligação é feita graças a tragédia vivida da pessoa sarcástica em si em comparação a vida de outras pessoas de melhor sorte), com um intuito mordaz quase cruel, muitas vezes ferindo a sensibilidade da pessoa que o recebe. A origem da palavra está ligada ao fato de muitas vezes mordermos os lábios quando alguém se dirige a nós com um sarcasmo mordaz”. Aí estão duas definições sem delongas, disponíveis a todo mundo com um celular conectado à internet. Poderia colocar aqui também uma conceituação do dicionário Aurélio, um pequeno calhamaço que está na minha família há décadas, mas teria de levantar da cadeira para fazê-lo. Estou sendo irônico, é claro. Na verdade, nem sei onde aquele livro foi parar desde que meu pai deu mais espaço para as ferramentas que ajudam a manter seu impecável jardim e diminuiu consideravelmente as estantes de livros na biblioteca de casa. Desculpe-me; estou sendo sarcástico. Qualquer verdade particular não condiz com o objetivo desta crônica que é tão somente responder aquela pergunta inicial: o sarcasmo incomoda ou ajuda a passar pelos incômodos? Peço agora escusas absolutórias (quando há razões suficientes para a sociedade não imputar pena ao infrator), pois tenho uma inclinação quase natural para deixar questões em aberto. Prefiro partilhar minhas dúvidas em vez de publicizar minhas convicções – a dialética que habita em mim saúda a ambiguidade que reside em você! E, assim, penso que avançamos num ambiente muito mais divertido, talvez naquela mesma balada na qual ironia e sarcasmo requebram como se não houvesse amanhã. Qual seja, este morder os lábios se assenta na harmonia e na balbúrdia do contemporâneo, fazendo-nos acreditar que as possibilidades ainda não estão todas aí. Porque sempre é possível finalizar o texto com uma frase sarcástica, mesmo que seja apenas para a catarse momentânea de um autor que lhe fez chegar até aqui sem ao menos lhe oferecer um final feliz.
Sarcástico – uma versão
Projeto de Estado
Brasil, 2022. E se um projeto de Estado padecer na vontade utópica? Um sonho perdido numa rodovia das lembranças que não vivemos. Autoestrada com pedágio indexado à inflação. E um fusca sem rumo… não, nada de fusca… os anseios automotivos de Itamar Franco tinham outros rumos. Tampouco há qualquer indústria nacional fabricando carros. A Miura foi extinta em 1992, a Gurgel em 1996. Até as montadoras estrangeiras estão abrindo mão do mercado brasileiro. Garagens cheias de carros sem compradores; geladeiras vazias para ávidos consumidores. Os anarcocapitalistas tecem loas à desregulação. Se vacilar, a taxa overnight retorna. Toda milícia tem malícia. Há males que vêm para males maiores ainda. Poder, poder, poder: uma tríade que abre o apetite da turba mal cheirosa e indigesta. Mais de dois anos com o seriado Chaves fora do ar no mundo inteiro. Quem ainda se lembra da fome daquele moleque? Arquimedes precisava de uma alavanca para mover o mundo; Chaves precisava apenas de um sanduíche de presunto para tornar o mundo melhor. “O Brasil não deu certo”, alguém diz. E outro alguém responde: “Foi sem querer querendo”. Incoerências e necessidades que ninguém faz questão de entender. Há aqueles que têm sede; há os que têm mágoa. Magoados, locupletam-se na saudade do que nunca tiveram. Sedentos, sucumbem à sedição. Querem água, não importam o custo. Como os antigos participantes da Escola Jônica, alguns de nós ainda teimam em encontrar a substância primordial. Tão anacrônicos que são, esquecem que depois da física há a metafísica – sim, é preciso dizer o óbvio. A turminha da Terra plana não cansa de criar fóruns de discussão online. Três séculos antes de Cristo, Eratóstenes calculou a circunferência do mesmo planeta que eu e você habitamos. Como ele fez? Ao observar o tamanho das sombras em diferentes localidades num mesmo horário. Ah, sim, também foi preciso usar o cérebro, órgão para o qual alguns seres da pós-modernidade mostram-se recalcitrantes. “Deem-lhes um desconto para tamanha estupidez”, diz o dono de um banco que baba quando o governo fala em subir juros. Sem pestanejar, o ministro da economia socorre o banqueiro com um guardanapo de seda. Seria uma cena delicada, não fosse o pequeno detalhe de causar vômito em qualquer um que ainda tenha o coração batendo no lugar certo. Arritmia, disritmia. Temos de sobreviver até a eleição. Ou não. Política é mais do que colocar um voto na urna de quatro em quatro anos. Vamos imitar a democracia direta ateniense? Não deem atenção ao Platão insatisfeito que enaltece a aristocracia. Platão, provavelmente, andaria de fusca. Hoje, as cidades-Estado não cabem numa asa de Brasília (a capital, não o automóvel). Deem-me um minutinho apenas para terminar este sanduíche de presunto. Hummm… tem gosto de passado. E o sabor do projeto de Estado não é diferente.
E agora, José?
Quando o SARCÁSTICOcomBR virou blog, em 23/03/2012, fizemos uma homenagem ao aniversário de Florianópolis celebrado naquele dia e, também, ao humorista Chico Anysio, falecido na mesma data. Hoje, 05/08/2022, dez anos e alguns meses depois, não é aniversário da capital catarinense, mas outro grande humorista (para ficar numa de suas muitas características), Jô Soares, também deixou a vida. No entanto, para homenagear a cidade na qual surgiu o SARCÁSTICOcomBR e homenagear igualmente uma de suas principais referências no humor, aspecto sempre tão caro ao site, reinterpretamos a imagem postada em 2012 (que você pode conferir abaixo).
A pantomima política rouba em cena
O corpo serve de suporte para a pantomima. Sem meias palavras, tampouco palavras inteiras. Gestos. Mímica. Reprodução de articulações comuns, facilmente assimiladas. Quando o discurso não se sustenta, a performance corporal chama a atenção para si! A política e a história acompanham com algum espanto estes mal chamados arautos da pantomima. Gente esdrúxula que, de alguma forma, obtém o poder através de portas abertas no caminho da ignorância. Winston Churchill, primeiro ministro inglês durante a Segunda Grande Guerra, dominava o verbo como poucos no seu meio de nobres. “Sangue, suor e lágrimas”, expressão popularizada no cotidiano, origina-se do primeiro discurso de Churchill ao assumir o comando do parlamento no Reino Unido. Vislumbrando dias difíceis pela frente, naquele 13 de maio de 1940, Churchill afirmou: “Não tenho nada a oferecer além de sangue, trabalho, lágrimas e suor”. No front oposto, Hitler beirava a mediocridade no manejar das palavras. Com a retórica em níveis críticos, o ditador nazista tinha de fazer estripulias com as mãos e o corpo para trazer os olhares para si. E todo mundo sabe que os exaltados raramente têm razão. Contam mil vezes uma mentira para si mesmos com o intento de dar alguma legitimidade à falta de argumentos inteligentes. Em 18 de março de 1997, o ex-presidente da República, Fernando Collor de Mello daria uma de suas mais reproduzidas entrevistas ao negar acusações de possíveis crimes. A repórter Sônia Bridi inicia a primeira pergunta: “O senhor está sendo julgado pela Receita Federal por sonegação fiscal…”. Collor a interrompe com uma frase que entraria em definitivo na crônica política brasileira: “Eu não estou sendo julgado pela Receita Federal. Isso é outra mentira. Não estou sendo julgado coisa nenhuma. E não existe processo legal formado. Isso é uma mentira, uma pantomima, uma patuscada”. O vocabulário espalhafatoso de Collor o remete a outro ex-presidente. Jânio Quadros, mais um daqueles presidentes eleitos sob a bandeira de varrer a corrupção, valia-se de seu conhecimento científico na forma de se expressar. Incluímos aqui a clássica frase “Bebo-o pois líquido é, se sólido fosse, comê-lo-ia”, num uso da mesóclise imitado tardiamente por Michel Temer. Em seu discurso de posse, Temer diria que as reformas de seu governo não modificariam os direitos adquiridos pelos brasileiros. E completaria: “Quando menos fosse, sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica”. Daí chegamos ao atual presidente brasileiro, político de longa presença na Câmara dos Deputados, sem nenhum discurso memorável, celebrado em anos recentes pelos comentários preconceituosos e ofensivos, inclusive tendo de responder à justiça nalguma oportunidade. Se a retórica lhe escapa, o que sobra? Sim, a pantomima. Com a realidade cada vez mais radicalizada na concisão, o gesto tosco, simplório e inconsequente subiu a rampa do Planalto para o deleite de admiradores devotos. A imagem bruta se transforma em meme da internet – uma espécie de síntese da disrupção social que se grudou às novas mídias. Neste 7 de Setembro de 2020, durante uma pandemia mundial, o Brasil se apresenta como uma das piores nações na administração da crise. Os mortos ultrapassam as centenas de milhares e a população não identifica em seu principal governante o compromisso para com a proteção social. A pantomima do presidente lhe ampara na falta de conhecimento sobre quaisquer assuntos relevantes exigidos pelo cargo. Dia da Independência do Brasil: contra todas as indicações dos agentes de saúde, o presidente desfilou sem máscara no Rolls Royce presidencial, acompanhado de crianças, algumas delas igualmente desprotegidas na face. Depois, como de hábito, provocou aglomeração de pessoas ao cumprimentá-las, também desrespeitando as diretrizes de distanciamento social para evitar a proliferação do vírus da Covid-19. Eis o desfecho da pantomima diária: um espetáculo ruim encenado na ausência de talento do protagonista. Uns poucos ainda aplaudem.