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Projeto de Estado

Brasil, 2022. E se um projeto de Estado padecer na vontade utópica? Um sonho perdido numa rodovia das lembranças que não vivemos. Autoestrada com pedágio indexado à inflação. E um fusca sem rumo… não, nada de fusca… os anseios automotivos de Itamar Franco tinham outros rumos. Tampouco há qualquer indústria nacional fabricando carros. A Miura foi extinta em 1992, a Gurgel em 1996. Até as montadoras estrangeiras estão abrindo mão do mercado brasileiro. Garagens cheias de carros sem compradores; geladeiras vazias para ávidos consumidores. Os anarcocapitalistas tecem loas à desregulação. Se vacilar, a taxa overnight retorna. Toda milícia tem malícia. Há males que vêm para males maiores ainda. Poder, poder, poder: uma tríade que abre o apetite da turba mal cheirosa e indigesta. Mais de dois anos com o seriado Chaves fora do ar no mundo inteiro. Quem ainda se lembra da fome daquele moleque? Arquimedes precisava de uma alavanca para mover o mundo; Chaves precisava apenas de um sanduíche de presunto para tornar o mundo melhor. “O Brasil não deu certo”, alguém diz. E outro alguém responde: “Foi sem querer querendo”. Incoerências e necessidades que ninguém faz questão de entender. Há aqueles que têm sede; há os que têm mágoa. Magoados, locupletam-se na saudade do que nunca tiveram. Sedentos, sucumbem à sedição. Querem água, não importam o custo. Como os antigos participantes da Escola Jônica, alguns de nós ainda teimam em encontrar a substância primordial. Tão anacrônicos que são, esquecem que depois da física há a metafísica – sim, é preciso dizer o óbvio. A turminha da Terra plana não cansa de criar fóruns de discussão online. Três séculos antes de Cristo, Eratóstenes calculou a circunferência do mesmo planeta que eu e você habitamos. Como ele fez? Ao observar o tamanho das sombras em diferentes localidades num mesmo horário. Ah, sim, também foi preciso usar o cérebro, órgão para o qual alguns seres da pós-modernidade mostram-se recalcitrantes. “Deem-lhes um desconto para tamanha estupidez”, diz o dono de um banco que baba quando o governo fala em subir juros. Sem pestanejar, o ministro da economia socorre o banqueiro com um guardanapo de seda. Seria uma cena delicada, não fosse o pequeno detalhe de causar vômito em qualquer um que ainda tenha o coração batendo no lugar certo. Arritmia, disritmia. Temos de sobreviver até a eleição. Ou não. Política é mais do que colocar um voto na urna de quatro em quatro anos. Vamos imitar a democracia direta ateniense? Não deem atenção ao Platão insatisfeito que enaltece a aristocracia. Platão, provavelmente, andaria de fusca. Hoje, as cidades-Estado não cabem numa asa de Brasília (a capital, não o automóvel). Deem-me um minutinho apenas para terminar este sanduíche de presunto. Hummm… tem gosto de passado. E o sabor do projeto de Estado não é diferente.

Projeto de governo

Brasil, 2021. Quando um projeto de governo insiste na destruição? Agora. Hipérboles deixaram de causar alarde. O mertiolate arde na ferida. As pústulas expostas dos antiapóstolos. Um evangelho abençoado pelo capital. Insinuações neoliberais numa dança assexuada, embalada pelo dissenso coletivo. Ataques sem drones. Florestas queimadas; lagos secos; lençóis freáticos já não protegem ninguém. Cobertor curto? Banqueiros puxam daqui, bolseiros puxam de lá: não importam as direções se os sentidos são os mesmos. A eterna privação do adversário sem defeito. Corrupção, erupção cutânea, prospecção mineral. O preço do petróleo vinculado à especulação do mercado externo. O frentista leva a culpa. “Confere o óleo e a água, por favor”. Motor superaquecido, mercado desabastecido. Mais uma greve de caminhoneiros na outra ponta da luneta. Energia renovável de base hidráulica privatizada. Hierarquia de usos; mais valia social. A carteira de títulos da dívida pública parece um menu de restaurante. Fome. “Coma as beiradas porque só sobraram as beiradas mesmo”. Cálculos nos rins – as contas não fecham. As turmas do fundão e do centrão gritam: “fascistas!”. As líderes de torcida fazem uma coreografia pró-União Soviética. Os negócios na China não param de dar lucro. Planejamento de longo prazo, planos quinquenais, olhos puxados e atentos. Bajuladores medíocres usam da conveniência para enaltecer seus ídolos. O juiz se mudou para outro país sem jamais ter sentado na cadeira da Suprema Corte. Heróis de capa e espada ou antagonistas cooptados? Jogue a moeda para cima como faz o Duas-Caras. Aquele uniforme preto não pertence ao Batman. O verde-louro da flâmula assumiu um tom degradê, degradado pelo mau uso das forças desalmadas. Um capitão expulso num mato sem cachorro, gato ou lobo. A onça pintada numa tela de algodão. Políticos com projetos de governo – uma espécie em extinção. Hunther S. Thompson continua escrevendo seu novo diário com rum e curtidas no Facebook. Medo e delírio em qualquer lugar. Recorde de visualizações em menos de 24 horas. No meio do caminho, uma pandemia-pedra. A família toda sente falta da prima que morreu em decorrência da Covid-19. A matéria-prima abunda, o consumo das famílias inadimplentes diminui. A última década registrou o mais pífio crescimento econômico na história da República. A moral da história tem fé, mas não tem religião. Estado laico. Governo arcaico. A solução é política e apenas política. O vizinho está com o rádio ligado. Adoniran Barbosa canta em Si Menor. Ciência e paciência, Iracema! “Paciência, sim, mas sem passividade”, acrescento aos versos do poeta!

Projeto de país

Brasil, 2020. Que projeto de país, que nada. Disrupção. Disritmia. Um pouco de nada e outro tanto de tudo. Pandemia pede passagem. O presidente qual agente do caos. Nem por hoje, tampouco por amanhã. E o que há de sobrar nesse mar de infâmia? Naufragados, degredados, apóstatas sem eira nem beira! Nenhum estado pode dar conta de tanta religião. Fé demais não cheira bem, como o cacófato que exala a falta de pudores. Seres pudorentos no arremedo de um falso Messias! Tamanha ablução; cem razões de ser. Mil e uma utilidades. Entre corrupções e rachadinhas, a fila anda. Aleatória, qual o voo de uma borboleta bêbada. Extrema, feito o bater de asas do beija-flor. A erva daninha machuca a si mesma. Que malícia! Quanta milícia! Tem quem sorva do cálice sagrado, mesmo sem saber se é cachaça ou refrigerante de cola. Coca-Cola é isso aí. Um golinho para o santo e outro para o anjo caído na terra do sol. Abaixo do Equador, todos sorrimos amarelo apesar do creme dental. Satisfação em substâncias que se untam antes de adentrar ao forno. Temperatura? Ok! Duração? Confirmada. Vai dourar as bordas ou torrar tudo de uma só vez? Ninguém sabe ao certo. Há aqueles que recomendam medicamentos via retal. Outros, banhos de sal. Aos negacionistas, qualquer remédio vendido na esquina. Até mesmo hidroxocloroquina. Numa ou noutra etapa do tratamento, o efeito placebo de pura magia. Parecido com o capitalismo financeiro: capital fictício de verdade que se reproduz na bruxaria de uma agência bancária. Dinheiro que gera dinheiro sem mercadoria. Comes e bebes. Nos edifícios mais altos, drinks com champanhe importado. As exportações, afinal, sempre deram conta de manter a colônia em dia. Consumo de insumos. Ao norte e ao oeste, veredas abertas no coração de uma floresta em chamas. Bombeiros que se armam. Bombinhas que se amam. A educação no final da festa dentro de uma sala de aula vazia. Realocação de recursos. Tudo por causa da família, da propriedade privada, da moral e dos bons costumes. Cidadãos de bens. De muitos bens, imóveis e aplicações financeiras. Alguém pode me dizer qual o Dow Jones Industrial Average? Exploradas, as crianças não têm por onde! Sujeitinho de segunda classe esperando uma bolsa qualquer, uma renda mínima que seja. A sociedade se penteia no espelho quebrado. Projeto de país? A questão fundamental continua sem resposta.

Quando os fundamentalistas saem do armário

Pequenos grupos de homens engravatados, empunhando estandartes e gaitas de fole circulam pelo Brasil no que chamam de “Cruzada pela Família”. Nestas cruzadas, eles literalmente marcham pelas ruas centrais das cidades para, a cada esquina, através de um megafone antigo, bradar frases como “contra o avanço sorrateiro do homossexualismo no mundo inteiro”.

No dia 23 de Janeiro foi a vez de Florianópolis ser agraciada com o desfile da idade média promovido pelo Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO), uma associação sediada no bairro paulista Higienópolis, cuja principal função é difundir as lições de Plinio Corrêa de Oliveira, fundador da Sociedade Brasileira de Defesa de Tradição, Família e Propriedade –TFP.

A missão de vida de Plínio era a “dedicação abnegada em defesa da Civilização Cristã”. O problema é que o que quer que seus seguidores entendam por “Civilização Cristã”, precisa coexistir no mesmo espaço que outros agrupamentos humanos, com outros valores e outras visões de mundo. Esta coexistência implica em uma série de acordos e o exercício cotidiano da tolerância, o que para “pessoas abnegadas” geralmente é um problema.

A dificuldade em lidar com a divergência e a necessidade de impor a própria visão sobre os outros estão entre as características principais dos fundamentalistas. Quando se promove ações para que valores baseados na religião de um grupo se sobreponha à carta magna do país, na qual está registrada a constituição de um Estado Laico, é de fundamentalismo que estamos falando.

Além de desfiles vintage-integralistas, a IPCO promove uma campanha contra a aprovação da PLC 122/2006, um Projeto de Lei de criminalização da homofobia no país. Um dos argumentos dos representantes do IPCO é o de que, caso a Lei seja aprovada, eles não poderão expressar livremente as suas ideias, já que consideram a homossexualidade um pecado. A sustentação desta tese é duvidosa, uma vez que a PLC 122 inclui a homofobia no mesmo parágrafo no qual já é crime o racismo e a descriminação por gênero, idade, procedência e religião na legislação brasileira, o que, segundo a lógica dos fundamentalistas, faria com que alguns comediantes de stand-up, que fazem piadas na linha “preto, viado, judeu e pobre,” estivessem presos há muito tempo.

O limite entre a liberdade de expressão e o delito de opinião é um debate formidável e renderia mais horas e laudas do que já rendeu. O fato é que o argumento citado é um dos pouquíssimos que fogem ao mantra “segundo a bíblia, é pecado” do IPCO, TFP e tantas outras agremiações que usam a Bíblia como um manual existencial. “A subordinação da política à moral, implica pois, numa subordinação da política à Religião” são as palavras de Plinio Corrêa. O “pecado” é o principal motivo para os ataques à descriminalização do aborto e ao casamento gay, duas questões que só deveriam dizer respeito às pessoas envolvidas.

Em contraponto às Cruzadas pela Família, ativistas libertários e movimentos sociais como o GLBTT, Direitos Humanos e Feminista têm se organizado para promover paralelamente aos atos da IPCO, manifestações a favor dos direitos das mulheres, união homoafetiva, Estado Laico e liberdade de expressão. Em Florianópolis não foi diferente.

Enquanto cerca de 20 homens da IPCO discursavam que “casamento é só entre homem e a mulher” e tentavam distribuir seus livros e panfletos entre os transeuntes que não pareciam entender bem se aquela movimentação era um protesto ou uma banda escocesa, manifestantes libertários cantavam “Ô Plínio! Que papelão! Nós não queremos outra inquisição!”.

Amedrontado com as cores berrantes dos agentes da ditadura gay, o coordenador da marcha procura um policial e conversa por alguns minutos. Logo após, o que deveria ser um servidor público vai até os libertários e pede que eles se “manifestem em outro lugar”, o que não é acatado, já que a rua é pública. O detalhe é que, segundo a Lei 13.628/2009 de Florianópolis,  a cidade “reconhece o respeito à igual dignidade da pessoa humana em todos os seus direitos, devendo para tanto promover sua integração e reprimir os atos atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade e preferências sexuais exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuízos a terceiros”. Ou seja, a homofobia já é crime na capital catarinense.

O restante do dia foi marcado pela tentativa de desvencilhamento da cruzada engravatada dos seus perseguidores coloridos. No auge de sua irritação, os membros da IPCO, chegaram a acusar os manifestantes de “Cristianofobia”. Esta ideia, de que os defensores do cristianismo sofrem bullying de pessoas que querem apenas ter o direito de decidir sobre a própria vida, chega a ser irônica, ainda mais vinda de um grupo que possui como herança séculos de tortura e manipulação. Os números falam por si, sobre quem oprime quem: Centenas de homossexuais são assassinados no país todos os anos. Só em São Paulo, 70% já sofreram agressões. São 200 mil mulheres mortas por ano por causa de abortos inseguros no Brasil.

O aspecto positivo de acontecimentos como as cruzadas (além das gaitas de fole), é que uma parte significativa destes indivíduos está finalmente saindo do armário. Do estímulo provocado pelo humor ginasial veiculado todos os dias na TV ao avanço do fundamentalismo religioso no Estado, rebanhos de todos as pelagens enfrentam a vergonha alheia e decidem expor suas posições publicamente. Por mais nonsenses e preconceituosas que elas possam parecer.

Passeatas minúsculas pela moral e os bons costumes e discursos inflamados em palanques públicos não são o problema. O grau de liberdade em uma sociedade se dá na medida em que o debate franco de ideias completamente opostas é feito publicamente sem consequências na epiderme de um dos lados. O problema é o repertório cultural oferecido pela mídia e a formação limitada que a educação pública dispõe. A população não está instrumentalizada suficientemente para lidar com a potência obscurantista presente no Brasil desde a sua fundação.

Enquanto uns promovem atos caricaturais nas ruas, outros vão até a casa das famílias dar caronas para pré-adolescentes participarem de cultos inocentes com bandas de música e tardes de brincadeiras. Em pouco tempo estas tardes idílicas se tornam fins de semana de pregação, e, quando as famílias percebem, os jovens já não se comunicam da mesma forma, pois foram instruídos pelos pastores a não falar o que acontece nestes círculos aos próprios pais.

Por trás de todo fundamentalismo existe um oportunista. É importante reafirmar posições, só que mais do que os seguidores, a atenção deve ser voltada aos pastores, dirigentes e, principalmente, às eminências pardas, pois são elas que lucram com as massas de manobras e trabalhadores escravos preparados desde a juventude.

Temos muitos armários para abrir ainda.

OUTRAS INFORMAÇÕES

Matérias e fotos do Centro de Mídia Independente
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2013/01/515776.shtml
http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2013/01/515806.shtml

Manifesto Coletivo de Alerta Anti-Homofóbico http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2013/01/515825.shtm

Vídeos
http://youtu.be/vQ3cSQN3-_I
http://youtu.be/oOgWg69QQXI

Sobre a PLC 122/2006
Texto: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=79604
Site de militantes: http://www.plc122.com.br

O mundo contemporâneo cabe num show do Roupa Nova

Há muito tempo que a filosofia do cotidiano caiu no esquecimento da nossa construção cultural diária. Antes, parecia que era um tijolinho por vez, quando havia uma clara posição ideológica atrás de cada latinha de refrigerante ou das canções populares que berravam contra os governos autoritários. Mas cantores e compositores voltaram do exílio para um tempo de cisão. Porém, ao invés de uma ruptura histórica, como cisma da Igreja Católica ou o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, o que se seguiu foi a abertura de um buraco no pensamento. A vala, cavalheiros e senhoritas, é tão grande que nada escapou dela e o passado que sobrevive às custas de uns poucos combatentes já não é mais o mesmo que era antigamente.

Quando as questões relativas ao futuro (e a tecnologia talvez seja o grande sintoma disso) ficaram extemporâneas porque cabem no presente, a própria ideia que tínhamos do passado como origem – do que somos ou do que poderemos ser – sofreu seu mais duro revés. Mesmo num show musical extremamente divertido, como foi a apresentação do grupo Roupa Nova em Biguaçu no último dia 20 de Julho de 2012, essa sensação de buraco afunda ainda mais em nossos corações. Seus velhos sucessos empolgam porque são, justamente, muito distantes deste sentimento de urgência que querem nos fazer necessário. Entre uma “Dona” e um “Anjo”, dois de seus grandes hits numa carreira de mais de 30 anos, percebemos que aquele romantismo padece de contemporaneidade. Não dá para negar que todo mundo ficou mais cínico, mesmo que por modismo. A justiça histórica faz seus próprios julgamentos com as únicas ferramentas que a sociedade lhe fornece: a vala, novamente. Se eles entoam à capela a frase “Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir”, uma das expressões mais devastadoras do cancioneiro popular romântico, também existe ali o desejo pelo que ficou para trás – um acessório mental que até mesmo o maior dos cínicos carrega em si. É, para fazer nova referência sonora, aquela “boa dose de lirismo” que herdamos do sangue lusitano, como Chico Buarque cantava em “Fado Tropical”. Mas Buarque e Roupa Nova são hoje muito mais referenciais do que presenças criadoras. E, sem criação, a única parte boa do que consideramos ser a tradição deixa de ser real.

Assim como ocorre com a agricultura, volta e meia passamos por um período de entressafra no pensamento criativo. Por falar nisso, não custa lembrar que a palavra Cultura é oriunda da expressão latina “colere”, que significa cultivar. E a tecnologia é voltada muito mais à reprodução (imitação, entenda-se) do que ao cultivo. Não por acaso, nosso mundo contemporâneo cabe num show do Roupa Nova, quando nos divertimos à beça, mas ainda assim queremos muito mais.

> Biguaçu/SC/Brasil, 27 de Julho de 2012.

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