O mundo contemporâneo cabe num show do Roupa Nova

Há muito tempo que a filosofia do cotidiano caiu no esquecimento da nossa construção cultural diária. Antes, parecia que era um tijolinho por vez, quando havia uma clara posição ideológica atrás de cada latinha de refrigerante ou das canções populares que berravam contra os governos autoritários. Mas cantores e compositores voltaram do exílio para um tempo de cisão. Porém, ao invés de uma ruptura histórica, como cisma da Igreja Católica ou o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, o que se seguiu foi a abertura de um buraco no pensamento. A vala, cavalheiros e senhoritas, é tão grande que nada escapou dela e o passado que sobrevive às custas de uns poucos combatentes já não é mais o mesmo que era antigamente.

Quando as questões relativas ao futuro (e a tecnologia talvez seja o grande sintoma disso) ficaram extemporâneas porque cabem no presente, a própria ideia que tínhamos do passado como origem – do que somos ou do que poderemos ser – sofreu seu mais duro revés. Mesmo num show musical extremamente divertido, como foi a apresentação do grupo Roupa Nova em Biguaçu no último dia 20 de Julho de 2012, essa sensação de buraco afunda ainda mais em nossos corações. Seus velhos sucessos empolgam porque são, justamente, muito distantes deste sentimento de urgência que querem nos fazer necessário. Entre uma “Dona” e um “Anjo”, dois de seus grandes hits numa carreira de mais de 30 anos, percebemos que aquele romantismo padece de contemporaneidade. Não dá para negar que todo mundo ficou mais cínico, mesmo que por modismo. A justiça histórica faz seus próprios julgamentos com as únicas ferramentas que a sociedade lhe fornece: a vala, novamente. Se eles entoam à capela a frase “Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir”, uma das expressões mais devastadoras do cancioneiro popular romântico, também existe ali o desejo pelo que ficou para trás – um acessório mental que até mesmo o maior dos cínicos carrega em si. É, para fazer nova referência sonora, aquela “boa dose de lirismo” que herdamos do sangue lusitano, como Chico Buarque cantava em “Fado Tropical”. Mas Buarque e Roupa Nova são hoje muito mais referenciais do que presenças criadoras. E, sem criação, a única parte boa do que consideramos ser a tradição deixa de ser real.

Assim como ocorre com a agricultura, volta e meia passamos por um período de entressafra no pensamento criativo. Por falar nisso, não custa lembrar que a palavra Cultura é oriunda da expressão latina “colere”, que significa cultivar. E a tecnologia é voltada muito mais à reprodução (imitação, entenda-se) do que ao cultivo. Não por acaso, nosso mundo contemporâneo cabe num show do Roupa Nova, quando nos divertimos à beça, mas ainda assim queremos muito mais.

> Biguaçu/SC/Brasil, 27 de Julho de 2012.

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