Pequenos grupos de homens engravatados, empunhando estandartes e gaitas de fole circulam pelo Brasil no que chamam de “Cruzada pela Família”. Nestas cruzadas, eles literalmente marcham pelas ruas centrais das cidades para, a cada esquina, através de um megafone antigo, bradar frases como “contra o avanço sorrateiro do homossexualismo no mundo inteiro”.
No dia 23 de Janeiro foi a vez de Florianópolis ser agraciada com o desfile da idade média promovido pelo Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO), uma associação sediada no bairro paulista Higienópolis, cuja principal função é difundir as lições de Plinio Corrêa de Oliveira, fundador da Sociedade Brasileira de Defesa de Tradição, Família e Propriedade –TFP.
A missão de vida de Plínio era a “dedicação abnegada em defesa da Civilização Cristã”. O problema é que o que quer que seus seguidores entendam por “Civilização Cristã”, precisa coexistir no mesmo espaço que outros agrupamentos humanos, com outros valores e outras visões de mundo. Esta coexistência implica em uma série de acordos e o exercício cotidiano da tolerância, o que para “pessoas abnegadas” geralmente é um problema.
A dificuldade em lidar com a divergência e a necessidade de impor a própria visão sobre os outros estão entre as características principais dos fundamentalistas. Quando se promove ações para que valores baseados na religião de um grupo se sobreponha à carta magna do país, na qual está registrada a constituição de um Estado Laico, é de fundamentalismo que estamos falando.
Além de desfiles vintage-integralistas, a IPCO promove uma campanha contra a aprovação da PLC 122/2006, um Projeto de Lei de criminalização da homofobia no país. Um dos argumentos dos representantes do IPCO é o de que, caso a Lei seja aprovada, eles não poderão expressar livremente as suas ideias, já que consideram a homossexualidade um pecado. A sustentação desta tese é duvidosa, uma vez que a PLC 122 inclui a homofobia no mesmo parágrafo no qual já é crime o racismo e a descriminação por gênero, idade, procedência e religião na legislação brasileira, o que, segundo a lógica dos fundamentalistas, faria com que alguns comediantes de stand-up, que fazem piadas na linha “preto, viado, judeu e pobre,” estivessem presos há muito tempo.
O limite entre a liberdade de expressão e o delito de opinião é um debate formidável e renderia mais horas e laudas do que já rendeu. O fato é que o argumento citado é um dos pouquíssimos que fogem ao mantra “segundo a bíblia, é pecado” do IPCO, TFP e tantas outras agremiações que usam a Bíblia como um manual existencial. “A subordinação da política à moral, implica pois, numa subordinação da política à Religião” são as palavras de Plinio Corrêa. O “pecado” é o principal motivo para os ataques à descriminalização do aborto e ao casamento gay, duas questões que só deveriam dizer respeito às pessoas envolvidas.
Em contraponto às Cruzadas pela Família, ativistas libertários e movimentos sociais como o GLBTT, Direitos Humanos e Feminista têm se organizado para promover paralelamente aos atos da IPCO, manifestações a favor dos direitos das mulheres, união homoafetiva, Estado Laico e liberdade de expressão. Em Florianópolis não foi diferente.
Enquanto cerca de 20 homens da IPCO discursavam que “casamento é só entre homem e a mulher” e tentavam distribuir seus livros e panfletos entre os transeuntes que não pareciam entender bem se aquela movimentação era um protesto ou uma banda escocesa, manifestantes libertários cantavam “Ô Plínio! Que papelão! Nós não queremos outra inquisição!”.
Amedrontado com as cores berrantes dos agentes da ditadura gay, o coordenador da marcha procura um policial e conversa por alguns minutos. Logo após, o que deveria ser um servidor público vai até os libertários e pede que eles se “manifestem em outro lugar”, o que não é acatado, já que a rua é pública. O detalhe é que, segundo a Lei 13.628/2009 de Florianópolis, a cidade “reconhece o respeito à igual dignidade da pessoa humana em todos os seus direitos, devendo para tanto promover sua integração e reprimir os atos atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade e preferências sexuais exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuízos a terceiros”. Ou seja, a homofobia já é crime na capital catarinense.
O restante do dia foi marcado pela tentativa de desvencilhamento da cruzada engravatada dos seus perseguidores coloridos. No auge de sua irritação, os membros da IPCO, chegaram a acusar os manifestantes de “Cristianofobia”. Esta ideia, de que os defensores do cristianismo sofrem bullying de pessoas que querem apenas ter o direito de decidir sobre a própria vida, chega a ser irônica, ainda mais vinda de um grupo que possui como herança séculos de tortura e manipulação. Os números falam por si, sobre quem oprime quem: Centenas de homossexuais são assassinados no país todos os anos. Só em São Paulo, 70% já sofreram agressões. São 200 mil mulheres mortas por ano por causa de abortos inseguros no Brasil.
O aspecto positivo de acontecimentos como as cruzadas (além das gaitas de fole), é que uma parte significativa destes indivíduos está finalmente saindo do armário. Do estímulo provocado pelo humor ginasial veiculado todos os dias na TV ao avanço do fundamentalismo religioso no Estado, rebanhos de todos as pelagens enfrentam a vergonha alheia e decidem expor suas posições publicamente. Por mais nonsenses e preconceituosas que elas possam parecer.
Passeatas minúsculas pela moral e os bons costumes e discursos inflamados em palanques públicos não são o problema. O grau de liberdade em uma sociedade se dá na medida em que o debate franco de ideias completamente opostas é feito publicamente sem consequências na epiderme de um dos lados. O problema é o repertório cultural oferecido pela mídia e a formação limitada que a educação pública dispõe. A população não está instrumentalizada suficientemente para lidar com a potência obscurantista presente no Brasil desde a sua fundação.
Enquanto uns promovem atos caricaturais nas ruas, outros vão até a casa das famílias dar caronas para pré-adolescentes participarem de cultos inocentes com bandas de música e tardes de brincadeiras. Em pouco tempo estas tardes idílicas se tornam fins de semana de pregação, e, quando as famílias percebem, os jovens já não se comunicam da mesma forma, pois foram instruídos pelos pastores a não falar o que acontece nestes círculos aos próprios pais.
Por trás de todo fundamentalismo existe um oportunista. É importante reafirmar posições, só que mais do que os seguidores, a atenção deve ser voltada aos pastores, dirigentes e, principalmente, às eminências pardas, pois são elas que lucram com as massas de manobras e trabalhadores escravos preparados desde a juventude.
Temos muitos armários para abrir ainda.
OUTRAS INFORMAÇÕES
Matérias e fotos do Centro de Mídia Independente
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2013/01/515776.shtml
http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2013/01/515806.shtml
Manifesto Coletivo de Alerta Anti-Homofóbico http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2013/01/515825.shtm
Vídeos
http://youtu.be/vQ3cSQN3-_I
http://youtu.be/oOgWg69QQXI
Sobre a PLC 122/2006
Texto: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=79604
Site de militantes: http://www.plc122.com.br
Muito boa a matéria. Parabéns. Mas só uma questão, referente a um dos cartazes. Porque ser contra a pedofilia só nas igrejas? Esse crime deve ser combatido e desaprovado em qualquer lugar, e não somente nas igrejas. Não é verdade?
Valeu Murilo! Concordo com você. No caso, o cartaz era uma “paródia” a este aqui: http://brasil.indymedia.org/images/2013/01/515823.jpg
Adorável trilha sonora para o evento, um primitivismo generalizado que merece instrumentos bem antigos, permitindo uma ambientação apropriada. E parece até agradável…
O tal do Cristo coitado, nem estava ali pra se defender. Ninguém leu os evangelhos, nem os canônicos, nem os apócrifos ou quem leu não entendeu. Não leram nem os que usaram o nome do Cristo pra fazer acusações, nem os que não usaram pra se defender, nem o cara que escreveu o artigo. A vida do Jesus tá muito mais pra uma comunidade alternativa que ia espalhando seu modo de viver cheio de amor incondicional e livre de apegos materiais, do que qualquer coisa que inspire homofobia. Beeem pelo contrário.
“O limite entre a liberdade de expressão e o delito de opinião é um debate formidável (…)”, porque ainda precisa-se debater os limites e possibilidades das opiniões. O ser primitivo, este contemporâneo, nem exercita o “olhar pelo olhar do outro”. A relação deste diálogo que percorre o país é tão naif que tem que ser feito aos berros, ruídos e cartazes… Efeitos sonoros e visuais, direção de arte espontânea que enfatiza a realidade.
É lindo, é maravilhoso os homofóbicos saírem com suas bandinhas e os GLBTT saírem também com seus adeptos, trazendo o debate pra rua. O tempo que tavam na rua não tavam assistindo BBBs da vida, nem novelas baratas.
O policial do mundo primitivo (porque só o mundo primitivo precisa dele), outro coitado que nem conhece as leis de convivência, nem sabe fazer o seu trabalho, porque os seus chefes também não sabem, então nunca aprendeu.
“O grau de liberdade em uma sociedade se dá na medida em que o debate franco de ideias completamente opostas é feito publicamente sem consequências na epiderme de um dos lados.” Olha o nível de evolução da humanidade deste grupo descrito aqui, nesta frase e aquela galera logo acima!!
Obrigada pelo registro!! Alguém precisava contar como é.
“O tempo que tavam na rua não tavam assistindo BBBs da vida, nem novelas baratas.” Concordo, Maria!
–– afinnar também a existência de outras elites, de origens diversas da nobreza tradicional, mas que, pela continuidade de suas linhagens familiares ao longo das gerações e pelo serviço que prestam ao país no campo cultural, econômico ou administrativo, podem ser consideradas como elites análogas à nobreza.
este povo que sao contra a pl 122. nao estao em defesa da liberdade de expressao coisa nenhuma eles querem é o direito de praticar a intolerancia religiosa a quem nao seguir a fe, religiao e o deus deles. em nome da liberdade de expressao eles querem praticar a injustiça, a perseguiçao e prejudicar os outros. baseados em argumentos religiosos. sao o crime e o mal que eles querem praticar em nome da liberdade de expressao. so eles querem ter a liberdade religiosa e de expressao negando a liberdade de expressao sexual do outro, perseguindo de forma criminosa quem nao segui a sua fe, religiao e seu deus.
Não sou a favor deste movimento religioso do modo que está agindo, mas venho pedir que reconsidere a frase:
“Em pouco tempo estas tardes idílicas se tornam fins de semana de pregação, e, quando as famílias percebem, os jovens já não se comunicam da mesma forma, pois foram instruídos pelos pastores a não falar o que acontece nestes círculos aos próprios pais.”
Pois participei desta ordem religiosa, e não havia esse “sigilo imposto” para com a familia.
André, eu não esta me referindo a uma ordem específica. De qualquer forma, generalizar é sempre uma armadilha. Estou preparando outro artigo só sobre a questão da influência das ordens e seitas na formação de crianças e adolescentes e seu comentário será levado em conta. Obrigado.
Mandou bem, Skánio!